Quilombo


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O termo "quilombo" passou por sucessivas ressignificações, desde sua origem, na África, até seus usos no Brasil, ao longo da Colônia, do Império e da República. Contemporaneamente, o conceito se encontra bifurcado entre o uso metafórico, sem referente fixo, que aponta para um ideal de organização social negra; e o uso legal, determinado por sua introdução na Constituição Federal de 1988, cujo referente combina “campesinato negro”, “terras de uso comum” e “grupos étnicos”.

A palavra tem origem no aportuguesamento de kilombo, palavra de língua umbundu, compartilhada pelos povos bantu. A partir do século XVII, em função da longa história de conflitos entre aqueles povos e seus vizinhos, o significado de “acampamento ou local fortificado” é deslocado para o sentido específico de instituição guerreira transcultural, formada por homens que, submetidos a severos rituais de iniciação, abandonam seus laços de origem e linhagem para adquirir uma nova identidade social. 

A inclusão no vocabulário português se dá por meio da legislação colonial (Conselho Ultramarino de 1740) [1] que define o termo como "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles" [2]. Esse uso persiste na legislação imperial, fixando no imaginário nacional a imagem de quilombolas como agrupamentos de escravizados fugidos e isolados em locais de difícil acesso, sem comunicação ou troca comercial com o meio circundante.

Com o fim do regime escravocrata, o termo desaparece na legislação republicana. Como objeto de interesse histórico-antropológico, seu sentido denotativo (eventos históricos documentados) está progressivamente comprometido com o sentido conotativo, que assimila o quilombo às noções de resistência política popular e cultural negra. Isso aparece tanto no primeiro trabalho histórico sobreo Quilombo dos Palmares, publicado pelo historiador e etnólogo Edison Carneiro (1912-1972), em 1947, quanto nos trabalhos dos jornalistas e historiadores Clóvis Moura (1925-2003) e Décio Freitas (1922-2004), que enfatizam o aspecto ativo e mesmo revolucionário (sob a forma de rebelião e guerrilha) da população escrava aquilombada diante do regime escravista.

A historiadora e ativista Beatriz Nascimento (1942-1995), por sua vez, enfatiza o quilombo como instituição que expressa a busca por independência, autonomia e organização própria, levando-a a conceber o quilombo como fenômeno que não está limitado aos marcos históricos e jurídicos da escravidão, mas se estende a territórios negros contemporâneos, destacadamente as favelas, tanto como um tipo de organização social, quanto como uma imagem, “instrumento ideológico” da luta negra contemporânea. O fenômeno histórico ganha um sentido cada vez mais contemporâneo, até dar lugar ao conceito de quilombismo, formulado em 1980 pelo ator, escritor e artista plástico Abdias do Nascimento (1914-2011).

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, o quilombo, e em especial o Quilombo dos Palmares, consolida-se como imagem privilegiada da luta negra no Brasil, materializada com o tombamento da Serra da Barriga (Alagoas) como patrimônio histórico e cultural brasileiro, em 1985. Em 1988, finalmente o termo ingressa no corpo legal republicano por meio da Constituição Federal, sofrendo sua última grande ressignificação. O termo aparece no capítulo relativo à cultura, associado à ideia de patrimônio histórico (artigos 215 e 216), mas é a partir do seu emprego no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que adquire sentido novo e socialmente produtivo. 

Ao falar de “remanescentes das comunidades de quilombos” e da obrigação do Estado em titular suas terras, o artigo aponta tanto para comunidades contemporâneas, quanto as vincula ao tema da posse da terra. Isso inverte não apenas o uso repressivo do termo na legislação colonial e imperial, mas também se afasta dos usos metafóricos ou alusivos. A nova definição legal aponta para a noção de “campesinato negro”, consolidada na legislação vigente a partir de 2003, por meio de sua vinculação aos fenômenos das “terras de uso comum” e dos “grupos étnicos”. O conceito já não cobre toda experiência organizativa negra (ou o ideário em torno do seu potencial transformador da sociedade brasileira), mas indica circunscrita e concretamente comunidades com percursos históricos específicos. Essas comunidades, mantendo vínculos organizativos memoriais próprios, estão marcadas pela posse de um território e, frequentemente, por conflitos em torno dele, decorrentes da dissolução das formas de organização do regime escravista. 

O conceito de quilombo dá lugar ao conceito de “comunidades remanescentes de quilombos” ou “comunidades quilombolas”, o que corresponde a cerca de seis mil localidades, predominantemente rurais, distribuídas por quase todos os estados do país. A maioria delas, segundo o IBGE (2020), estão localizadas na Bahia, Minas Gerais e Maranhão. Enquanto 1.027 localidades mineiras e 864 localidades maranhenses estão distribuídas por aproximadamente metade dos municípios daqueles estados, 1.055 localidades baianas cobrem mais de 60% dos municípios do estado. Apesar de não apresentarem números absolutos expressivos, outros estados têm a presença de localidades quilombolas em mais da metade dos seus municípios: Alagoas (55%), Pernambuco (59,4%) e Sergipe (68%).

Ainda na África, depois de descrever um tipo de acampamento militar fortificado, kilombo passa a designar um tipo de sociedade guerreira relativamente autônoma. Ao ser trazido para América, pela legislação colonial portuguesa, o quilombo passa a descrever grupos de escravos fugidos sujeitos à caça e à guerra, ao longo de quase todo período colonial e imperial brasileiro. Durante a República, ausente da legislação, a noção é positivada pela historiografia interessada em investigar as formas de resistência popular e as formas de organização políticas e culturais negras, convertendo-se em símbolo do movimento negro brasileiro. Ao ser inserida na legislação republicana, por meio da Constituição de 1988, o conceito histórico, presentificado pelo movimento negro, deriva na categoria jurídico-administrativa de comunidade quilombola. 

 

Notas

[1] Órgão do Império Português, criado em 1642, com atribuições financeiras e administrativas sobre as colônias portuguesas. O Conselho funcionou em Lisboa até sua extinção, em 1833, com o intervalo entre os anos de 1808 e 1821, quando foi transferido, com a Corte Portuguesa, para o Rio de Janeiro.

[2] Apud HENRIQUES FILHO, Tarcísio. “Quilombola: A legislação e o processo de construção de identidade de um grupo social negro”. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 48, n. 192, pp. 147-170, out.-dez. 2011.