Quilombismo


  • Descrição
  • Bibliografia

Em O Quilombismo, livro publicado em 1980, o ator, escritor e artista plástico Abdias do Nascimento (1914-2011) constrói uma tese “histórico-humanista” com base na experiência quilombola. O autor define o quilombismo como um movimento social de resistência física e cultural da população negra, que se estrutura não apenas como grupos fugidos para o interior das matas na época da escravidão, mas também como todo e qualquer grupo tolerado pela ordem dominante em função de suas declaradas finalidades religiosas, recreativas, beneficentes, esportivas, entre outras. Neste sentido, afirma Nascimento, “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” [1].

O “quilombismo” seria, portanto, um projeto de “revolução não violenta” dos negros brasileiros, para criar o “Estado Nacional Quilombista”, isto é, uma sociedade marcada pela recuperação do “comunitarismo da tradição africana”, incluída a articulação dos diversos níveis de vida, para assegurar a realização completa do ser humano e garantir a propriedade coletiva de todos os meios de produção. Uma composição teórica que transita entre marxismo e nacionalismo negro, articulados ao anti-imperialismo e ao pan-africanismo, mas que busca se ancorar também em referências brasileiras ao eleger o quilombo como imagem síntese.

A tese do quilombismo consolida e alimenta uma tradição de apropriações simbólicas do fenômeno histórico dos quilombos que se desdobra a partir dos anos de 1940 e se intensifica na década de 1970. Os marcos iniciais mais evidentes dessas apropriações são os textos do antropólogo Arthur Ramos (1903-1949), nos quais o quilombo é caracterizado como fenômeno “contra-aculturativo” [2], e o livro Quilombo dos Palmares, publicado em 1947 pelo historiador e etnólogo Edson Carneiro (1912-1972).

Em 1948, o próprio Abdias Nascimento dá início à publicação de O Quilombo – Vida, Problemas e Aspirações do Negro, que perdura até 1950, contando com dez edições. O periódico, que é um desdobramento do Teatro Experimental do Negro (1944), antecipa e, de certa forma, prepara a tese de 1980. O tema volta a ser abordado nos trabalhos dos jornalistas e historiadores Clóvis Moura (1925-2003) [3] e  Décio Freitas (1922-2004) [4], que enfatizam o aspecto revolucionário dos quilombos diante do regime escravista. 

Quando Beatriz Nascimento (1942-1995) volta ao tema, em 1977, a historiadora e ativista enfatiza menos o papel do quilombo como resistência ou ruptura, como os autores anteriores, e destaca seu papel como organização social, expressão da busca pela independência, autonomia e organização própria do negro. Essa interpretação permite que a autora antecipe a tese do quilombismo, ao menos no sentido em que ela afirma a contemporaneidade do quilombo, tanto como um tipo de organização social (do qual as favelas são um exemplo), quanto como uma imagem, “instrumento ideológico” da luta negra contemporânea [5]. 

Esses trabalhos estão na base da proposta do Movimento Negro Unificado (MNU), durante o primeiro congresso com representatividade nacional, em 1978, de definir o dia 20 de novembro, dia da morte do Zumbi dos Palmares (1655-1695) como o Dia Nacional da Consciência Negra. 

Todos esses textos e eventos constituem não só o contexto, mas a própria tessitura do conceito de quilombismo, que, por sua vez, ganha realidade por meio de inúmeras apropriações posteriores. Grupos de militância social negra, periférica, descolonial, contra-hegemônica, entre outras adjetivações convergentes, que reivindicam a imagem do quilombo e do aquilombamento, não apenas participam daquela tradição de apropriação simbólica do quilombo, iniciada nos anos de 1940, como também expressam, em larga medida, a tese do quilombismo formulada por Abdias Nascimento, mesmo que não façam referência explícita a ela.


 

Notas

[1] NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 263. A edição mais recente é da Editora Perspectiva, publicada em 2020 e com prefácio de Kabengele Munanga (1942).

[2] RAMOS, Arthur. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1942.

[3] Em especial Rebeliões da senzala (1959) e Os quilombos e a rebelião negra (1981).

4. Em especial Palmares – A guerra dos escravos (1971) e Insurreições escravas (1975).

5. NASCIMENTO, Beatriz. Historiografia do quilombo. In: NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018.