Mestiçagem


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Historicamente, o conceito de mestiçagem deriva dos modos como a noção de raça toma corpo ao longo do período colonial e é atualizado desde então. As doutrinas racistas e eugênicas de origem europeia condenavam como degeneração o resultado da mistura entre a raça branca, considerada superior, e as raças inferiores. A mestiçagem como signo de uma suposta democracia racial, organiza a narrativa sociocultural e política que assume importância ímpar na América Latina, região marcada por um sistema de dominação que subjuga populações indígenas originárias e povos africanos escravizados.

A América Latina é uma das regiões em que a mistura racial e cultural ocorre de modo mais extensivo e violento durante a colonização hispânica e portuguesa. Em meados do século XIX chega o momento de começar a pensar a viabilidade da América mestiça em face do racismo científico então vigente. A questão passa a ser como inserir as nações emergentes na ordem moderna. Vemos então progressivamente a mestiçagem ser reinventada enquanto fábula fundacional de muitos países da região, em conjunto com o apagamento das dinâmicas conflituosas de seus processos de formação. Ideologias e práticas de branqueamento e o acionamento da mestiçagem enquanto marca da integração são incorporadas pelos discursos nacionalistas oficiais, ganhando diferentes nuances em cada contexto local.

No Brasil, as elites intelectuais ocupadas em refletir sobre o problema da mestiçagem produzem diferentes interpretações sobre a viabilidade da modernização do país. Muitas têm caráter pessimista, ao pregar que não há salvação para o tecido social enfraquecido e degenerado pela mistura, porém algumas leituras vislumbram que a questão pode ser remediada.

Nas primeiras décadas do século XX ganham corpo as teorias sobre o branqueamento da população e o ideário conhecido como mito da democracia racial. Uma das soluções articuladas é o apagamento da população negra no Brasil por meio de uma miscigenação controlada. As políticas de incentivo à imigração europeia, consideradas garantidoras de um bom elemento para forjar o tipo racial brasileiro, são exemplos dessa perspectiva.

A ideia de democracia racial produz uma torção na compreensão da miscigenação, ao defender que não é possível haver conflitos raciais exacerbados em uma sociedade propensa à mistura. O problema é que esse tipo de afirmação somente pode ocorrer por meio do ocultamento do aspecto violento das dinâmicas relacionais, como o estupro das mulheres negras e indígenas como forma de controle e dominação, e omitindo as profundas desigualdades produzidas e reproduzidas pelas formas naturalizadas de racismo presentes na vida cotidiana. Apesar disso, essa narrativa tornou-se hegemônica até meados do século XX.

Nos anos seguintes à 2ª guerra, quando o mundo reconhece o impacto dos horrores causados pelo regime nazista, o Brasil chega a ser considerado internacionalmente como o “paraíso racial” da convivência entre pessoas de raças e etnias diferentes. Logo, o país torna-se um exemplo a ser estudado e modelo a ser replicado em países em que o conflito racial seria explícito, como nos EUA ou na África do Sul. Nesse período, um conjunto de pesquisas sobre relações raciais são realizadas no Brasil, a partir de uma iniciativa que ficou conhecida como Projeto Unesco. As conclusões desse projeto começam a evidenciar a existência do racismo na sociedade brasileira e os seus desenvolvimentos têm impacto significativo na institucionalização das ciências sociais no Brasil. Nos anos 1970, a sociologia brasileira começa a demonstrar de modo incontestável a relação entre o racismo e a persistência das desigualdades socioeconômicas na sociedade brasileira. Esse momento converge com a agenda estratégica do movimento negro de incremento da mobilização e da percepção do impacto da discriminação racial na estruturação da vida social. O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, conduz a pauta da desconstrução do mito da democracia racial, recusando as classificações múltiplas do espectro da mestiçagem à brasileira e conclamando a afirmação da identidade negra.

No debate sobre mestiçagem nos contextos de dominação colonial, é importante ter atenção às dimensões de gênero e sexualidade co-produzidas junto às ideias de raça. A articulação entre gênero e raça aparece, por exemplo, no controle da sexualidade das mulheres e nas expectativas de hiperdisponibilidade, hipersexualização e hipervirilidade direcionadas aos corpos negros. Enquanto construções relacionais, gênero e raça servem para propósitos de desumanização, classificação, organização, hierarquização e contenção. Tais dinâmicas conformam estereótipos e preconceitos com profundas marcas materiais, físicas e subjetivas que são reproduzidas cotidianamente.