Feminismo negro


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O feminismo negro pode ser entendido como um pesamento social e político surgido nas Américas entre os séculos XIX e XX, perfazendo formas de produção intelectual, artística e de ação coletiva baseada em reflexões, agências e performances de mulheres negras. Em particular no século XXI, o feminismo negro é associado aos diversos movimentos de mulheres negras e ao pensamento produzido dentro e fora da academia que consideram experiências, lugares socioeconômicos e produções intelectuais e culturais de mulheres afrodescendentes em diferentes espaços da sociedade.

O feminismo negro, como produção de saber, coloca no centro do conhecimento experiências sociais marginalizadas e invisibilizadas pelo sistema capitalista, patriarcal e colonial do mundos moderno e contemporâneo. Autoras clássicas do pensamento feminista negro refletem sobre as trajetórias, saberes e vivências de mulheres negras em diferntes contextos sociais, em particular, durante e após a escravidão. O tema das desigualdades e injustiças sociais e as biografias sociais de mulheres negras escravizadas, libertas, livres, operárias, trabalhadoras domésticas, profissionais liberais, ativistas, artísticas, políticas, religiosas e intelectuais fazem parte do horizonte de produção  e reflexão do feminismo negro.

Por volta do século XIX, algumas autoras refletem sobre os processos emancipatórios, como o abolicionismo, e sobre os direitos das mulheres, como os direitos políticos e civis. Além da luta por cidadania das mulheres negras, o pensamento feminista negro está na crítica ao racismo no interior do feminismo ocidental. Por essa razão, as mulheres negras estão na base de um pensamento radical, pois rejeitam toda forma de eurocentrismo, colonialismo e discriminações étnicas e raciais. Um dos pilares do feminismo negro clássico é o discurso da Sojourner Truth (1797-1883), Ain´t a woman? (Eu não sou uma mulher?)[1].

No século XX, teóricas feministas negras estadunidenses ganham destaque mundial. Angela Davis (1944), em seu livro Mulheres, Raça e Classe, torna-se referência incontornável para o entendimento do pensamento feminista negro que se espraia da América do Norte para outras partes do planeta, assim como Audre Lourde (1934-1992), Patricia Hill Collins (1948)  e Kimberle Crenshaw (1959).

Na França, uma expoente do feminismo negro é Francoise Vergès (1952), que impacta de forma intensa o debate em diálogo com a decolonialidade, abordagem epstemológica de matriz latino-americana. Em seus livros, Feminismo Decolonial (2000) e Uma Teoria Feminista da Violência (2021), Vergès trata das características do feminismo negro e decolonial, rompendo com as formas mais punitivistas do feminismo e suas feições europeias, pois dá centralidade às vivências e experiências de mulheres racializadas, especialmente negras, africanas, árabes e islâmicas.

Na América do Sul, uma fonte do feminismo negro está na performance, poesia e voz da afro-peruana Victoria Santa Cruz (1922-2014), com o seu poema Gritaram-me Negra[2], em que transforma a experiência do preconceito racial contra a mulher negra em matéria de criação artística e protesto. O pensamento feminista negro conta também com a colombiana Mara Viveros Vigoya, grande divulgadora das pensadoras negras brasilerias para  outras partes do continente latino-americano e para o Caribe. A intelectual é autora de numerosos artigos sobre a temática de raça, gênero e colonialidade nas Américas. Destaca-se seu livro de diálogos com Angela Davis e Gina Dent,  Black Feminism: Teoria Crítica, Violências y Racismo (2019).

Alguns textos-base para a formação do feminismo negro contemporâneo brasileiro são escritos nas décadas de 1970 e 1980. Uma das referências mais importantes é Lélia Gonzalez (1934-1994). Muitos dos seus artigos são fundamentais   para indentificar principios elementares  do feminismo negro, dentre eles “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” (1983) e “Por um feminismo afro-latino-americano” (1988). Autoras negras que não se identificam como feministas também deixam produções fundamentais para sustentar o pensamento feminista negro brasileiro, como Beatriz do Nascimento (1942-1995), que escreve o artigo seminal “A mulher negra e o amor”.

A Revista de Estudos Feministas publica, nos anos 1990, um importante número com autorias de mulheres negras. O material se destaca por marcar a primeira vez no Brasil em que uma revista acadêmica dedica todo um número à produção de mulheres negras. Entre as presentes  neste dossiê estão as pesquisadoras Marcia Lima, Matilde Ribeiro, Sueli Carneiro (1950), Edna Roland, Angela Giliam e Maria Aparecida da Silva.

No século XXI, o pensamento feminista negro se diversifica ainda mais. Novas gerações de intelectuais emergem no debate público, especialmente na arena digital. Além das redes sociais, as universidades, depois das políticas de cotas, tornam-se espaços férteis para a produção intelectual das novas gerações do feminismo negro.

Antigas e novas gerações do feminismo negro têm em comum práticas e reflexões teóricas sobre as intersecções entre raça e gênero, ainda que os caminhos e contextos sociais da sua produção encontrem peculiaridades e desafios próprios, tornando o próprio feminismo negro bastante plural e multifacetado.

Notas

1. Sojourner Truth profere esse discurso na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, no ano de 1851. Trata-se de uma intervenção  em que ela reage aos argumentos de autoridades religiosas que defendem a natureza frágil feminina para contraporem-se aos direitos das mulheres. Uma tradução realizada pelo antropólogo e professor da UFRB, Osmundo Pinho, está disponível no Portal Geledés, ver https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/ Acesso em 03 out.2021.

2. Ver a performance de Victória Santa Cruz em  https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0