Democracia Racial


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A noção de democracia racial se consolida no Brasil entre os anos 1930 e 1940. Para compreendê-la, entretanto, é preciso recuar um pouco no tempo. O racismo científico, vigente desde o fim do século XVIII, postula que a mistura racial leva inevitavelmente à degeneração das populações. As elites intelectuais da América Latina do início do século XX, diante de um enorme contingente populacional marcadamente misturado e não branco, assumem a tarefa de acomodar a mestiçagem no interior de narrativas nacionais que garantam possibilidades de progresso e inserção na ordem moderna. É nesse cenário que a ideia de democracia racial se desenvolve enquanto discurso apaziguador de conflitos raciais e signo de convivência harmoniosa das diferenças. 

O conceito de raça foi produzido durante a expansão colonial para justificar a dominação e a subjugação de populações originárias e povos africanos escravizados. A doutrina interpretava as diferenças humanas dentro de um ordenamento natural hierarquizado que posiciona a raça branca como superior em relação a todas as outras. Tal paradigma informa os racismos científicos da época e é a base para as teorias eugênicas que atrelam características físico-corporais a qualidades morais, psíquicas e intelectuais,  condenando, desse modo,  a mistura entre as raças supostamente superiores e inferiores. 

Seguindo esses pressupostos eugênicos, as nações emergentes na América Latina, forjadas na violência colonial que marca as formas de  dominação hispânica e portuguesa, estão condenadas à decadência e ao atraso político, econômico e cultural. Tal constatação lança as elites da época na tarefa de encontrar uma solução que viabilize projetos de desenvolvimento e avanço nacional. Assim, enquanto discurso sociocultural e político, a mestiçagem figura como mito fundacional em toda a região latino-americana, ainda que com importantes nuances locais. 

No Brasil, muitas leituras indicavam o fracasso civilizatório por causa de indivíduos mestiços degenerados, desequilibrados e que inevitavelmente transmitem essas características ao corpo da nação. Para outros, o problema pode ser remediado por meio do gradativo embranquecimento da população, produzido mediante a miscigenação orientada para a valorização do elemento branco da composição. Nesse sentido, políticas de incentivo a imigração europeia foram levadas a cabo para garantir o "bom elemento" que se sobreponha na conformação da raça nacional. 

Por volta dos anos 1930, esse ideário começa a ser ressignificado e os hábitos e particularidades culturais ganham mais ênfase do que a visão puramente biologicista. Emerge um novo discurso político e cultural, que valoriza a mestiçagem como singularidade nacional, celebrada como traço distintivo e signo de evolução social. Aos poucos, esse imaginário começa a ser chamado de democracia racial, ao oferecer a visão de uma sociedade naturalmente propensa à mistura. Esse tipo de discursividade molda o conflito racial, exalta uma pretensa cordialidade nas relações de convívio interracial e omite, entre outros aspectos, como a violencia sexual opera como forma de controle e dominação. 

Sob o impacto do pós-Segunda Guerra e dos horrores nazifascistas, a concepção determinista da raça como fato biológico é globalmente rejeitada. Nesse contexto de recomposição geopolítica, a fama da democracia racial brasileira chamou a atenção internacional como exemplo a ser estudado por causa da suposta ausência de conflitos raciais exacerbados. Nos anos 1950, um conjunto de pesquisas sobre relações raciais foram realizadas no país sob patrocínio e encomenda da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Os resultados desses estudos começaram a evidenciar de modo contundente o racismo na sociedade brasileira. 

A partir daí, as pesquisas sociológicas sobre relações raciais, discriminação e desigualdade socioeconômicas são fundamentais para a compreensão da democracia racial enquanto uma construção mítica que contribui para a manutenção da ordem política vigente. No final dos anos 1970, com a abertura democrática, ocorre uma inflexão política e simbólica fundamental. Em 1978 é fundado o Movimento Negro Unificado (MNU), com uma pauta de forte investimento na desconstrução do mito da democracia racial, enquanto sustentação de uma falsa visão de ausência de preconceitos ou de formas supostamente mais brandas de discriminação racial. Soma-se a isso a afirmação da identidade negra como forma de mobilizar e ampliar a percepção do impacto da discriminação racial na estruturação da vida social brasileira. No mesmo período, pesquisas sociológicas demonstram de maneira conclusiva a relação entre discriminação racial e mobilidade social. 

Em meados da década de 1980, ocorre o adensamento gradual da relação entre o movimento negro e esferas de governo. A Constituição de 1988 avança no plano legislativo ao criminalizar o racismo e reconhecer os direitos de comunidades quilombolas. Desde então, a relação entre a questão racial e a persistência das desigualdades socioeconômicas ganha cada vez mais espaço no debate público, com inflexões político-institucionais importantes nos anos 2000, direcionadas não apenas para denunciar e combater ao racismo, mas também para fomentar uma agenda efetiva de promoção da igualdade racial. 

O mito da democracia racial, elevado a discurso oficial nacional durante grande parte do século XX, oculta as práticas de assimilação e de embranquecimento e, sobretudo, a violência inerente às profundas desigualdades de distribuição de poder da sociedade colonial escravocrata. A atuação do movimento negro, as pesquisas sócio-históricas e os estudos de estratificação social atuam para desconstruir essa narrativa e reconhecer e combater as dinâmicas racistas que estruturam a sociedade brasileira.