Decolonial
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O pensamento decolonial e a noção de decolonialidade se referem tanto a uma área de produção de conhecimento acadêmico quanto a uma prática de intervenção política. A proposta é interrogar de maneira crítica a estrutura colonial de poder que persiste na América Latina, por meio do deslocamento da perspectiva eurocêntrica e ocidental como referência universal e da valorização das histórias, dos conhecimentos e das experiências locais.
A decolonialidade deriva da noção de colonialidade do poder, concebida na virada dos anos 1980 para os 1990 pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (1930-2018) e trata da matriz de poder característica da modernidade. Esse padrão de exercício de poder se desenvolve em torno de dois eixos históricos de constituição. O primeiro eixo é a invenção da raça como forma de classificar e produzir desigualdades entre membros de uma mesma espécie. A modernidade, forjada e difundida desde a Europa, cria o conceito de raça para diferenciar de modo hierarquizado “nativos” e europeus, colonizados e colonizadores. Esse mecanismo se entrelaça com o segundo eixo, que trata da criação de um novo sistema de exploração social dada pelo capital, por intermédio da mercantilização da força de trabalho. Nessa versão da modernidade, a história caminha do estado de natureza para o ponto civilizatório máximo, que é justamente a civilização ocidental europeia. Sob uma lógica linear, evolucionista e dualista, o mundo dr divide entre Europa e não Europa. Essa perspectiva é o ponto de partida para a criação de justificativas para variadas formas de controle e dominação.
A concepção da colonialidade do poder concebida por Quijano torna-se base para o pensar e o fazer decolonial, a partir do questionamento da ordem estabelecida e da criação de outras propostas interpretativas para as estruturas societárias desiguais em âmbito global e local.
No final dos anos 1990, é formado o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), composto por intelectuais latino-americanos de diferentes áreas disciplinares [1]. O grupo parte de diversas fontes e influências teóricas para promover reflexões sobre a realidade cultural e política da América Latina, enfrentando as narrativas hegemônicas sobre a modernidade e as relações assimétricas estabelecidas entre a Europa e os seus “outros”.
A perspectiva decolonial apresenta um contradiscurso sobre a emergência do mundo moderno e recusa a versão cujo destaque recai sobre o Iluminismo e a Revolução Industrial. O ideal de igualdade enunciado na Europa ocorre ao mesmo tempo em que a ideia de raça é legitimada. De um lado estão conceitos como cidadania, autonomia e liberdade individual; de outro, dominação e subjugação colonial. Essa é a ambiguidade ocultada que constitui a modernidade/colonialidade.
A novidade da visão decolonial é evidenciar a negação do contexto violento da experiência colonial que condiciona o controle do comércio transatlântico entre o final do século XV e o início do XVI. Assim, Europa e América surgem em relação, sobre a base de vinculações racialmente ordenadas que justificam a subjugação de populações originárias e africanas escravizadas. Nessa leitura, a invasão e usurpação de territórios não europeus e não modernos produzem o sentido mesmo da modernidade.
Essa configuração de poder não desaparece com a dissolução formal da relação metrópole/colônia dada pelos processos de independência, pois as hierarquias territoriais, econômicas, culturais, subjetivas e epistêmicas permanecem naturalizadas. A diferença colonial segue operando na forma da sobrevalorização do saber acadêmico, considerado neutro e universalmente válido, dos costumes e dos hábitos europeus.
Nessas dinâmicas, os conhecimentos, as formas de vida e as experiências das periferias e das margens são apagados e relegados à posição de inferioridade no ordenamento capitalista global. A decolonialidade propõe novas formulações e percepções que tornem evidentes os processos de subalternização de longa duração como forma de preservar a dominação e o controle de posições de poder ao longo do tempo.
Entre os desdobramentos do pensamento decolonial está a crítica feminista. Para a socióloga argentina María Lugones (1944-2020), a elaboração original de Quijano oferece um enquadramento adequado, porém limitado sobre a intersecção entre gênero e raça na conformação da colonialidade do poder. Para a autora, seria necessário avançar no entendimento sobre como o gênero é (re)produzido no sistema colonial e superar a leitura que reforça a organização patriarcal, heterossexual e ancorada no determinismo biológico e binário. Essa lógica terminaria por recair na interpretação produzida pelo sistema hegemônico de gênero da própria colonialidade. Uma compreensão mais acurada precisa considerar como gênero e raça estão fundidos e ganham significados de maneira entrelaçada no sistema capitalista globalizado.
Muitas discussões proliferam a partir das novas perspectivas fomentadas e também das críticas direcionadas às proposições decoloniais. Ao promover visões e posturas contra-hegemônicas, a decolonialidade aponta para a interdependência entre classificação racial e formação do sistema capitalista moderno e globalizado. Ao situar a produção de conhecimento, a leitura decolonial desloca o eixo europeu/ocidental como centro de origem de enunciações supostamente universais e desinteressadas, promovendo assim a recuperação e a valorização de saberes e conhecimentos produzidos desde a diversidade de posicionalidades do Sul Global.
Nota
[1] Alguns dos principais participantes do M/C são: Aníbal Quijano (Peru), Agustín Lao-Montes (Porto Rico), Arturo Escobar (Colômbia), Catherine Walsh (Equador), Edgardo Lander (Venezuela), Enrique Dussel (México), Fernando Coronil (Venezuela), Javier Sanjinés (Bolívia), María Lugones (Argentina), Nelson Maldonado-Torres (Porto Rico), Ramón Grosfoguel (Porto Rico), Santiago Castro-Gómez (Colômbia), Walter Mignolo (Argentina), Zulma Palermo (Argentina).